A página em branco, o silêncio... Queremos escrever, mas quando nos sentamos perante uma página em branco, o silêncio invade-nos...
Quantas vezes me sinto arrebatada e inspirada numa aula para escrever, ou quando leio trechos de um livro que me toca profundamente, quando ouço uma música, ou quando a brisa solar me acaricia o cabelo... Em momentos como estes, abre-se uma porta em mim, e desfilam na minha mente ideias, contos, poemas, diálogos, e quase morro com tanta vontade de escrever... Mas deixo passar esses momentos, porque ou tenho de seguir caminho, ou tenho de estar atenta a quem fala... E quando me sento para realmente escrever, o silêncio invade-me...
Preciso de um bom bocado... Vou mergulhando em camadas de mim mesma, buscando a corrente que me levará a entrar "naquele" estado de espírito...
Fecho os olhos, respiro fundo, relaxo os músculos e deixo-me ir... Quero tanto deambular em mim, por mim... E uma doce melodia vai ecoando bem lá no fundo... Palavras cristalinas, raios de luz, um doce embalar... E lá está ela, uma personagem... A minha velha amiga personagem... Vem sorridente com flores nas mãos, um ramo de perfumadas peónias, um cesto cheio de maravilhosos morangos vermelhos, doces, sumarentos, e uma caixinha cheia de aromáticas madalenas.
Coloca as peónias numa jarra, que pousa na mesa da cozinha, o seu perfume é inebriante... Peónias, uma das suas flores preferidas...
Decide lavar os morangos, está desejosa de os comer, só o cheiro destes suculentos frutos desperta nela sensações estranhas, como que apaixonantes... Morangos... Porquê morangos?... Ia jurar que ainda no ano passado, afirmou não gostar muito deles...
E as madalenas? Há anos que não come madalenas! Porque sentiu uma vontade irresistível de as trazer, mal as viu à venda?
São estes os pensamentos que desfilam pela mente da minha personagem, enquanto vai lavando silenciosamente os morangos...
E sem que ela saiba, eu sei a resposta a todas as questões que lhe passam pela mente...
O sol bate na janela da cozinha, já com os morangos lavados ela senta-se à mesa pensativamente... A mesa tem umas cores vibrantes, o rosa das peónias, o vermelho dos morangos, o laranja das madalenas de limão... E o sol, o sol que bate na jarra de cristal e brilha, iluminando o seu rosto...
- Tenho de fazer um chá, estas madalenas só podem ser comidas com chá... - pensou ela.
E nesse momento colocou água na chaleira a ferver...
Quando tudo estava pronto na mesa, sentiu-se arrebatar por uma extrema felicidade... Com algo tão simples, os seus poros, os seus olhos, a sua alma estava arrebatada... Uma simples refeição banhada pelo sol... Que pura felicidade...
Começou a comer os morangos, um a um, primeiro cheirava-os, inspirava-os, trincava-os a meio, ficando com os dedos cheirosos e vermelhos do morango, quanto mais comia, mais seduzida, maravilhada se sentia, e não os conseguia parar de comer... Descobriu que tinha sede de morangos... Estava deliciada...
Serviu o chá perfumado na delicada chávena de porcelana, pegou numa madalena, deu-lhe uma dentada, bebeu um gole de chá e parou no tempo... Como se tivesse acabado de ingerir Luz, sol liquido...
Que prazer... Que deleite...
Morangos e madalenas com chá...
E eu sei o porquê de tanto deleite, de tanto prazer...
A literatura tinha feito com que estes simples alimentos, provocassem uma experiência tão arrebatadora à minha amiga personagem.
Sim, a literatura...
Com todo o seu poder, entranha-se nos nossos poros, desperta-nos paixões, relembra-nos coisas que julgávamos mortas...
Proust e as suas madalenas com chá...
Cuca Canals e a referência a morangos apaixonantes...
Dois autores lidos pela minha doce personagem...
E agora, se me dão licença, vou beber o meu chá. Já está à temperatura ideal... Tenho madalenas para acompanhar, e antes de adormecer, ainda vou devorar os últimos morangos que me restam....