quinta-feira, 26 de maio de 2011

os nós do meu novelo

nascemos. à medida que crescemos e vamos formando a nossa personalidade, muita coisa se vai enrolando no nosso novelo. somos um novelo. de experiências, de sensações, de modelos, de vivências. e o nosso novelo vai agarrando tudo. vai chupando a água derramada, os sorrisos e o sangue. o fio de lã chupa todas as nódoas. e para além disso vai-se intrincando, enrolando sobre si próprio. quando damos conta, somos grandes. e sabemos que muitas coisas estão presas no início do nosso novelo... coisas que nos condicionam quando somos grandes... coisas que não queremos, coisas que nos põe doentes... queremos livrar-nos delas, mas não conseguimos... por mais que lavemos o novelo, a água já não consegue chegar ao centro... molha apenas a capa exterior... quero libertar-me daquilo que tenho nas entranhas, quero libertar-me daquilo que não me deixa respirar, do que não me deixa relaxar, do que não me deixa ser... quero tanto, preciso tanto... como se consegue? ou me esventro, ou me viro do avesso... preciso tanto respirar sem as amarras do centro do meu novelo... quero mudar de pele, tocar nos extremos, rebentar com tudo, para poder voltar a reconstruir-me livremente... rasgar, rebentar, esventrar, partir, quebrar, rastejar, enlamear... quero ser tudo o que não sou, para assim poder ser eu. uma coisa que pode ajudar, sempre que nos depararmos com aquilo que do centro de nós vem à superfície, com aquilo que nos põe doentes fisicamente só de pensarmos, quando os nossos medos, as nossas angustias nos atingem como uma pedra cheia de espinhos na barriga, podemos encher o peito de ar, olhar o horizonte e dizer para o centro de nós mesmos: que se foda.
quero quebrar todas as ligações, rebentar todos os fios, ultrapassar todos os meus centros manchados de merda. 
quero ser livre de ser.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Metamorfoses da Alma

Metamorfoses da  Alma é uma colecção de textos escrita entre Fevereiro de 2005 e Julho de 2006. Como podem perceber já lá vão uns anos... 
Todos esses textos foram publicados num blog criado por um grupo de amigos, onde todos deixávamos algo de nós. 
Hoje decidi partilhar com vocês, os meus escritos da época.
Para os lerem basta clicar aqui.
 

Morangos e Madalenas com Chá

A página em branco, o silêncio... Queremos escrever, mas quando nos sentamos perante uma página em branco, o silêncio invade-nos... 
Quantas vezes me sinto arrebatada e inspirada numa aula para escrever, ou quando leio trechos de um livro que me toca profundamente, quando ouço uma música, ou quando a brisa solar me acaricia o cabelo... Em momentos como estes, abre-se uma porta em mim, e desfilam na minha mente ideias, contos, poemas, diálogos, e quase morro com tanta vontade de escrever... Mas deixo passar esses momentos, porque ou tenho de seguir caminho, ou tenho de estar atenta a quem fala... E quando me sento para realmente escrever, o silêncio invade-me... 
Preciso de um bom bocado... Vou mergulhando em camadas de mim mesma, buscando a corrente que me levará a entrar "naquele" estado de espírito...

Fecho os olhos, respiro fundo, relaxo os músculos e deixo-me ir... Quero tanto deambular em mim, por mim... E uma doce melodia vai ecoando bem lá no fundo... Palavras cristalinas, raios de luz, um doce embalar... E lá está ela, uma personagem... A minha velha amiga personagem... Vem sorridente com flores nas mãos, um ramo de perfumadas peónias, um cesto cheio de maravilhosos morangos vermelhos, doces, sumarentos, e uma caixinha cheia de aromáticas madalenas.  

Coloca as peónias numa jarra, que pousa na mesa da cozinha, o seu perfume é inebriante... Peónias, uma das suas flores preferidas...
Decide lavar os morangos, está desejosa de os comer, só o cheiro destes suculentos frutos desperta nela sensações estranhas, como que apaixonantes... Morangos... Porquê morangos?... Ia jurar que ainda no ano passado, afirmou não gostar muito deles... 
E as madalenas? Há anos que não come madalenas! Porque sentiu uma vontade irresistível de as trazer, mal as viu à venda?
São estes os pensamentos que desfilam pela mente da minha personagem, enquanto vai lavando silenciosamente os morangos...
E sem que ela saiba, eu sei a resposta a todas as questões que lhe passam pela mente...

O sol bate na janela da cozinha, já com os morangos lavados ela senta-se à mesa pensativamente... A mesa tem umas cores vibrantes, o rosa das peónias, o vermelho dos morangos, o laranja das madalenas de limão... E o sol, o sol que bate na jarra de cristal e brilha, iluminando o seu rosto...
- Tenho de fazer um chá, estas madalenas só podem ser comidas com chá... - pensou ela. 
E nesse momento colocou água na chaleira a ferver...

Quando tudo estava pronto na mesa, sentiu-se arrebatar por uma extrema felicidade... Com algo tão simples, os seus poros, os seus olhos, a sua alma estava arrebatada... Uma simples refeição banhada pelo sol... Que pura felicidade...
Começou a comer os morangos, um a um, primeiro cheirava-os, inspirava-os, trincava-os a meio, ficando com os dedos cheirosos e vermelhos do morango, quanto mais comia, mais seduzida, maravilhada se sentia, e não os conseguia parar de comer... Descobriu que tinha sede de morangos... Estava deliciada...
Serviu o chá perfumado na delicada chávena de porcelana, pegou numa madalena, deu-lhe uma dentada, bebeu um gole de chá e parou no tempo... Como se tivesse acabado de ingerir Luz, sol liquido...
Que prazer... Que deleite... 
Morangos e madalenas com chá...

E eu sei o porquê de tanto deleite, de tanto prazer...
A literatura tinha feito com que estes simples alimentos, provocassem uma experiência tão arrebatadora à minha amiga personagem.
Sim, a literatura...
Com todo o seu poder, entranha-se nos nossos poros, desperta-nos paixões, relembra-nos coisas que julgávamos mortas...

Proust e as suas madalenas com chá...
Cuca Canals e a referência a morangos apaixonantes...
Dois autores lidos pela minha doce personagem...

E agora, se me dão licença, vou beber o meu chá. Já está à temperatura ideal... Tenho madalenas para acompanhar, e antes de adormecer, ainda vou devorar os últimos morangos que me restam....